Temos, enquanto ocidentais, dois e apenas dois modelos para a morte. A morte do Cristo na Cruz, e a morte de Sócrates dialogando. Prova radical que somos, enquanto ocidentais, uma síntese malograda entre judeus e gregos. Malograda, porque, ao imaginarmos a hora da nossa morte, não sabemos como queremos morrer: apaixonadamente ou impassíveis - embora, muito provavelmente, na hora da morte isto não conte.
Imitação de Cristo ou de Sócrates: eis no fundo nossa escolha. Ser santo ou engajado ser filosofo ou contemplativo. Do ponto de vista cristão a escolha socrática é escolha da alienação e do pecado. Do ponto de vista socrático a escolha cristã é escolha da ilusão e do engano. Não há maior pecado do ponto de vista cristão que a "tristeza do coração", isto é, desamor, indiferença. E não há maior engano do ponto de vista socrático que o deter "opiniões", ou seja, afastar-se da sabedoria. Escolhas estas que não podem ser sintetizadas.
Temos exemplos radiantes da indiferença socrática: tanto da indiferença aos movimentos em meu redor, ataraxia, quanto da indiferença aos sofrimentos no meu intimo, apatia. Como, por exemplo, o herói que morre indiferente as dores; o imperador romano que morre em pé, congelado em cubo de gelo; o bruxo medieval que morre calmo e sorri dente na fogueira; o gentleman inglês que morre fumando cachimbo; o aristocrata francês que se dirige à Guilhotina escolhendo o perfume apropriado; Goethe que morre escrevendo; ou ainda, o hippie atual que morre em reedição do gentleman, "à bout de souffle" acendendo cigarro. O comum a todos os exemplos é a morte, e a vida com dignidade, isto é: esteticamente. Ter vida e morte belas, limpas, não sujas de sangue.
A indiferença elaborou, ao longo da historia do Ocidente, duas grandes ideologias. A estóica na Antiguidade, a classista na Idade Moderna. Dois grandes impérios, o romano e o britânico, elevaram a indiferença em ideal oficial e predominante. O ideal do gentleman inglês - aquele que carrega o fardo do "homem branco" - pode ser resumido nesta famosa sentença: ter consciência e camisa limpa. Nada é capaz perturbá-lo e, portanto, nada pode sujá-lo. É "impecável".
O grande confronto entre as duas maneiras de vida ocidental, entre amor e indiferença, se dá no confronto entre Cristo e Pilatos. Um, cujo rosto está sujo da saliva de seus inimigos, de suor e de sangue. O outro, que lava as mãos em bacia elegantemente servida por escravos. Tal encontro pré-figura a historia toda do Ocidente. Na atualidade, por exemplo: confronto entre engajado e tecnocrata.
6 comentários:
Puxa dois modelos de morte? Mas os dois nao estavam fazendo a mesma coisa? Nao foram ambos acusados de perversao e porisso executados?
Curiosa esta opçao ocidental de modelos nao ocidentais.
Pessoalmente eu prefiro a morte inesperada, nem apaixonada nem impassivel mas a morte como fato inevitavel e inexoravel como parte de nossas poucas certezas.
O grande problema da indiferença me parece ter origem na preocupaçao pela propriedade e pelo status quo, mas isso mereceria muitas laudas mais de reflexao.
A imagem final do amor vs indiferença é perfeito embora meio biblico. Pilatos se lavando da culpa por condenar um pregador do amor é verdadeiramente forte e repete-se diariamente bem diante de nossos olhos sem que nada efetivo possa ser feito que nao o exercicio de pensar e indignar-se
Lucas Guedes:
só pra dizer que gostei do que vi por aqui,ainda que rapidamente.
Volto,com certeza, com mais tempo.
abs
Eu me alinho mais a Sócrates e de preferência limpinho.
Por aquelas imensas coincidencias, o texto para amanhã com Heloísa é do Fusser. Mandaram link por email, depois te mando. abço
Eduardo Araújo
Que texto bom! =D
Quase um ensaio...
Puxa, seu texto é bem inteligente. Coisa de gente lúcida, etc.
Seu último parágrafo deu a impressão de que vc queria falar mais. Acho que o assunto está bem aberto ainda.
A questão de Engajado x Tecnocrata merece mais um texto.
Abraço
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