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sexta-feira, 4 de maio de 2007

angu de sangue, a peça

nem arroz, nem feijão, nem bife. em meu jantar de ontem foi servido angu. puro e seco. quer dizer, com um pouco de sangue. é, sangue. esse que corre nas veias, sabe? pra piorar, comi num porão frio e escuro, sentado numa tábua sem encosto.


assim foi a apresentação do coletivo angu de teatro no centro cultural são paulo. parte da segunda mostra latino-americana de teatro de grupo, a peça angu de sangue é baseada em contos do livro homônimo e de balé ralé, ambos do escritor marcelino freire. depois de um pequeno tumulto para conseguir ingresso – foi necessária uma segunda sessão – o grupo do recife veio dizer à são paulo que esta cidade não é a única em que predomina a solidão, violência, exclusão, persistência e dor. que as pessoas não conversam, não se ouvem, não se entendem. apenas falam. falam ao mesmo tempo, falam sozinhas, falam com todos e com ninguém.


logo no primeiro conto, "faz de conta que não foi. nada", já dá vontade de mandar os atores calarem suas bocas, tanta é a angústia, a indiferença e a rapidez com que narram a história de um menino de rua assassinado. é assim também no emocionante "socorrinho", contado e cantado por hermila guedes, no qual uma garota, representada por uma boneca, é estuprada. ou então em "muribeca", em que a catadora de lixo, que mora numa geladeira, descobre que o lixão de onde tira todo seu sustento vai ser desativado.


o grupo recifense conseguiu ilustrar de maneira simples e fiel os contos de marcelino, que parecem ter sido escritos para o teatro. mesmo os textos com apenas um personagem soam como diálogos, seja com a consciência ou com uma terceira pessoa inventada a fim de colocar nela a responsabilidade de um destino cruel. no espetáculo, os contos se transformam em cenas ágeis e densas, que nos conduzem rapidamente para o mundo daqueles personagens que, primeiro condenamos ou sentimos pena. depois, percebemos que são iguais a nós, frágeis e incompletos, numa sociedade em que todos falam, mas ninguém ouve ninguém.

encenação do conto "socorrinho", em angu de sangue